História e memória: o caso das “aparições” de Água de Pau em 1918

Introdução

Entre Junho e Julho de 1918, verificou-se, na freguesia de Água de Pau da ilha de São Miguel, Açores, um singular fenómeno que muitos dos seus habitantes e parte da imprensa local denominaram de “aparições” de Nossa Senhora. Estas supostas “aparições” vêm no seguimento das que se verificaram em Fátima entre 13 de Maio e 13 de Outubro de 1917[1] e noutras localidades portuguesas. É neste contexto que nos propomos apresentar o caso das “aparições” de Água de Pau, em 1918, procurando analisar a partir da confrontação de fontes escritas e orais o processo cronológico e histórico das “aparições” e a edificação da ermida, que, ainda que “oficialmente” o não fosse, constituiu, sem dúvida, uma espécie de homenagem ao evento. Nesta perspectiva, pretende-se, pois, reconstruir a história das “aparições” de Água de Pau a partir, por um lado, da documentação escrita e por outro, da oralidade mnemónica como fonte alternativa de reconstrução do passado deste acontecimento local ainda preservado na memória da comunidade pauense. Para além da investigação na imprensa da época e nos documentos oficiais da Igreja, abordaremos, sobretudo, a “construção” da memória do acontecimento nas décadas seguintes, bem patente, por exemplo, na imprensa. Visto tratar-se de um tema do século XX, e partindo do princípio que a memória colectiva, como elo de interpretação do passado, é a voz e a imagem do acontecido, faremos uso de técnicas pertencentes ao universo metodológico da história oral como instrumento para o estudo deste facto de religiosidade popular de Água de Pau. Nesta perspectiva, a recolha de testemunhas orais (habitantes de Água de Pau) permitirá fornecer uma ideia aproximada do que ainda resta de significativo deste “acontecimento” na memória colectiva e também do significado que se atribui à Ermida sob a invocação de Nossa Senhora do Monte, construída treze anos após as “aparições”.

  1. 1. As “aparições” de Água de Pau em 1918: reconstrução dos eventos

Entre Junho e Julho de 1918, correu a notícia de que, na freguesia de Água de Pau, (concelho da Lagoa, ilha de São Miguel, Açores), teriam acontecido fenómenos sobrenaturais logo identificados como “aparições” marianas

A primeira “aparição” tem como testemunhas e protagonistas duas crianças: Maria Joana Soares Tavares do Canto, principal interveniente das “aparições” e do “milagre do Sol”, uma vez que era a única que afirmava dialogar com Nossa Senhora, e Maria Sofia, também conhecida por Sofia Paulino, ambas com 8 anos de idade. Maria Joana, filha de Teófilo Tavares do Canto e de Isolina Adelaide Soares – família de elevada posição social da freguesia de Água de Pau – nasceu a 21 de Agosto de 1910. Maria Sofia, que nasceu na América do Norte, era filha de pais de origem irlandesa que lá haviam morrido e foi adoptada por um casal sem filhos que se fixou em Água de Pau. Maria Sofia desempenhou neste processo das “aparições” de Água de Pau um papel secundário em relação a Maria Joana do Canto.

Com base na recolha de informações e artigos sobre o assunto, a primeira “aparição” ocorreu a 18 de Junho de 1918[2]. O único jornal que fornece esta data é o Diário dos Açores. Segundo o testemunho de Maria do Carmo do Canto, prima da “vidente” Maria Joana do Canto, esta primeira “aparição” de Nossa Senhora deu-se no quintal da casa do avô de Maria Joana, quando esta estava a brincar com Maria Sofia. A segunda “aparição” verificou-se no mesmo local, momento em que Nossa Senhora teria pedido às crianças para subirem ao monte chamado Pico da Figueira, como nos conta Maria do Carmo do Canto[3]:

A Joana e a Sofia tinham 8 anos, elas estavam a brincar as duas no quintal do Santiago e começaram a chorar muito. A avó disse: O que foi, o que é que aconteceu? Ela respondeu : Ai avó a gente viu ali em cima. Nossa Senhora só falava com Maria Joana. A gente viu uma Senhora ali em cima.

Quando ela mais a Sofia viram Nossa Senhora disseram aos pais: A gente viu uma senhora muito linda, muito linda. Os pais disseram: Vocês não digam nada a ninguém. Os avós e os pais ficaram muito aterrorizados e disseram que elas não tinham visto nada. No dia imediato, as pequenas estavam a brincar e tornaram a ver  Nossa Senhora. Ela disse para elas irem ali acima, (ao Pico) todos os dias, não é na parte onde está construída a ermida, mas é mais adiante, onde é mais estreito, até tinha uma cruz, mas as pessoas tiraram.

Analisando o texto Fenómenos, Lendas e Monte Santo, da autoria de Gil Moniz Jerónimo, um dos poucos investigadores que se debruçou sobre o assunto, na primeira “aparição” “… duas crianças que brincavam descuidadas numa casa solarenga da zona da Ermida de Santiago, de Água de Pau, viram um clarão no fundo do quintal, isto na direcção do ‘Pico do Concelho’, também conhecido por ‘Pico da Figueira’, do qual surgiu uma imagem de um homem chagado, de cuja fronte brotava sangue (…). Deixava transparecer a imagem de Cristo crucificado, segundo depois julgamento feito.”[4] Segundo o mesmo autor, na segunda visão apareceu Nossa Senhora às duas crianças: “Olhando furtivamente, de vez em quando para o pico lá ao fundo, na mesma direcção da primeira visão, a Joana notou que uma senhora vestida de branco envolta num clarão que seus olhos aceitaram, a chamava para o monte. Também a Sofia, por ter sido alertada, viu igualmente a misteriosa senhora.”[5] Relativamente a esta primeira visão, o jornal A Ilha apenas salienta que “a pequenina Maria Joana filha duma nobre família tivera a primeira visão, quando andava no Monte com uma criança de origem plebeia.”[6] Um outro jornal, o Diário dos Açores, relata com mais pormenor esta primeira “aparição”:

… estava a Maria Joana a brincar no quintal do seu avô paterno, em Santiago desta Vila (…), com uma sua amiguinha de escola e sua vizinha, a Sofia Paulino (…). Em dada altura da brincadeira, viram as crianças ao fundo do quintal uma grande claridade, sobre uma japoneira[7] e no meio dessa claridade uma Senhora, muito formosa, que lhes falou. As crianças, que não tinham mais que oito anos, ao princípio amedrontaram-se e fugiram, mas continuando a Senhora a chamá-las com muito bom modo voltam-se as meninas, por fim, acercando-se, então, da Senhora e esperando que Ela lhes falasse. Disse-lhes a Senhora que continuassem a ser boas e obedientes aos seus pais e a todos os seus superiores e que continuassem a rezar, pedindo a Nosso Senhor para que acabasse com a guerra. Recomendou-lhes também que dissessem aquilo mesmo a todo o povo da freguesia …[8]

A partir destas quatro versões, verificam-se duas principais contradições: trata-se do local onde ocorreu a primeira “aparição” e da imagem que as crianças julgam ter visto. Se Maria do Carmo do Canto e o jornal Diário dos Açores afirmam que a primeira visão aconteceu no quintal do avô paterno de Maria Joana, o jornal A Ilha refere que esta ocorreu no próprio monte, o Pico da Figueira. A versão dada por Gil Moniz Jerónimo faz transparecer que as duas primeiras “aparições” têm a sua origem neste mesmo Pico. Além disso, é de salientar que segundo este mesmo autor, as crianças teriam visto, pela primeira vez, Cristo e não Nossa Senhora, que só surgiria a partir da segunda “aparição”.

De acordo com os relatos de Maria do Carmo, as duas crianças subiam ao monte todos os dias, para rezarem, como recomendado por Nossa Senhora. A Senhora também havia informado que dentro em breve se daria um milagre. O mesmo é mencionado pelo Diário dos Açores :

… e para isso recomendou-lhes mais ainda que fossem para o alto do monte, sobranceiro à Vila, em lugar que lhes havia de indicar, quando lá chegassem, prometendo que daí a dezoito dias havia de haver um sinal no céu ou na terra para que toda a gente se convencesse de que era verdade tudo quanto havia dito. Isto passou-se a 18 de Junho de 1918 e logo no dia imediato, depois da escola, as crianças foram para o alto do monte como a Senhora recomendara. Ao chegarem ao cimo do monte, a senhora apareceu-lhes, no meio duma grande claridade e no outro extremo do monte, quase a meio da encosta, voltada para a Caloura. As crianças foram até junto dessa claridade, só por elas vista, e aí se ajoelharam a rezar por longo tempo, ficando a Maria Joana mesmo quase em êxtase.[9]

Na segunda “aparição” (19/06/1918), Nossa Senhora comunicara-lhes que no espaço de 18 dias se daria um acontecimento, na terra ou no céu que credibilizasse os acontecimentos e pediu-lhes para que anunciassem esta revelação à população. Segundo o testemunho de Maria do Carmo, as mensagens transmitidas durante as “aparições” apelavam à oração para acabar com a guerra[10], à alteração do nome do Pico onde se sucederam as supostas “aparições”, que por vontade da “entidade celeste” deveria chamar-se Monte Santo, à construção de uma ermida no lugar onde ocorriam estas “aparições”, isto é, no Pico da Figueira. Para além disso, a “Senhora muito linda” teria comunicado a Maria Joana que a levaria para o céu quando completasse os 18 anos[11]. Segundo o mesmo testemunho, as duas “videntes” terão sido censuradas e desencorajadas pelos pais, o mesmo não acontecendo com a tia­?avó de Maria Joana, que, pelo contrário, acreditou nas duas crianças, incentivando-as a cumprirem os pedidos e mensagens transmitidas durante as “aparições”:

Mais prudentes e para não serem desmentidas, como o haviam sido antes, as duas meninas contaram mais este acontecimento à tia-avó da Joana, já sua confidente. Esta, embora soubesse que a encosta do monte não possuía acesso e era muito íngreme e parcialmente coberto por silvado, aconselhou-as a irem ao monte rezar, ao encontro da senhora que as havia chamado. Mas não só as incentivou a cumprirem aquilo que sentiam, como também ela, muito devota senhora, dali avante procurou acompanhar as duas crianças que iam orar ao pico.[12]

É a partir das visitas quotidianas das duas “videntes” ao “Monte Santo”, acompanhadas pela tia-avó de Maria Joana que os habitantes de Água de Pau começaram a aderir e a afluir ao citado Monte, como afirma Gil Moniz Jerónimo: “Porque já acompanhadas na subida e na descida por muita gente de água de Pau, então os pais aceitaram aquela misteriosa atracção.” A revelação de que a 5 de Julho iria ter lugar um acontecimento proporcionou, sem dúvida, o aumento de curiosos e de crentes a concorrerem ao Monte Santo.

  1. 2. O Milagre do Sol e a mediatização do fenómeno

No dia 5 de Julho de 1918, um ano depois das “aparições” em Fátima, o fenómeno do Sol, tal como em Fátima, reproduziu-se em Água de Pau, no então já apelidado de Monte Santo. Segundo o testemunho oral de Maria do Carmo, “houve 12 mil pessoas no Monte Santo a presenciarem as “aparições”, até veio gente de Santa Maria (…). O Sol começou a girar, a girar e as pessoas gritaram todas dizendo meu Deus, nós vamos morrer hoje. Depois o Sol parou de girar e de ter claridade e apareceu a Sagrada Família, os Anjos, muitas coisas e a ermida do Monte Santo.”

É a partir deste evento que a imprensa local começa a aproximar-se e a relatar os factos milagrosos. No entanto e apesar de o jornal O Autonómico ter recebido notícias sobre as anteriores “aparições”, deslocando um redactor ao local para recolha de informações, afirma que nada recolheu de seguro e de credível para publicação dos acontecimentos:

Havendo aqui chegado com insistência várias notícias acerca de factos maravilhosos, ocorridos no pico fronteiro, freguesia de Nossa Senhora dos Anjos, de Água de Pau, resolvemos, como aliás muita e muito boa gente, de perto e de longe, ir também até lá com uns amigos e, depois de vermos e ouvirmos alguma coisa, colhendo mesmo informações da protagonista, não concluímos, francamente, nada de seguro que pudéssemos comunicar aos nossos leitores.

Julgamos pois mais prudente ficar de reserva até que fale, se falar, quem é competente em tais casos.[13]

Contrariando a visão céptica que tinha apresentado no seu número de 29 de Junho, o jornal O Autonómico é o que relata mais extensamente este acontecimento de 5 de Julho, com um artigo do editor e director do jornal, António Rodrigues Carroça e uma carta de um residente em Água de Pau, Leopoldo Brèe d’Almeida Tavares de Medeiros. António Rodrigues Carroça, testemunha ocular do acontecimento de 5 de Julho, descreve o “milagre do Sol” ocorrido às 6 horas da tarde que extasiou a “vidente” Maria Joana:

Basta de reserva e silêncio!…

De mais a mais, pedem-me com insistência que eu narre o que observei e ouvi sexta-feira, 5 do corrente, no pico de Água de Pau, aonde fui pela segunda vez naquele dia, inesperadamente, atraído pelos casos maravilhosos que se contavam e também pela concorrência de pessoas, de ambos os sexos, de todas as classes, que pressurosamente para lá corriam desde o amanhecer.

Vou, pois, com toda a verdade e sinceridade, como me cumpre nesta ocasião melindrosa, esforçar-me por satisfazer à expectativa dos que estão à espera das minhas impressões.

Entrei no pico às 4 e 20 minutos da tarde. (…) Para cima das 10:000 pessoas, com certeza, de vários pontos da ilha, povoavam a parte escalvada e se estendiam ainda pelas encostas (…) aguardam ansiosas a vinda da menina vidente, que então saía já de casa, cortejada pelos seus, extremosos pais e muito povo.

Quatro e meia, ou pouco mais, assoma a ditosa criança à entrada do pico.

(…) a menina é conduzida ao colo de um homem até ao lado sul do pico, (…) aonde foi fazer oração a Nossa Senhora. (…) Comecei então a andar, com grande dificuldade, de um lado para o outro, no intuito de ouvir o que diziam, (…) notando nas pessoas que ali estavam, muita impaciência e descrença em tudo o que até então se ouvira dizer. (…) Faltavam, porém, uns minutos para as 6 horas, e eis que ela apareceu, subindo o pico e dizendo a algumas pessoas que a seguiam, que ia aparecer uma coisa no Sol ! Não ouvi isto ; simplesmente vi o tal homem pegar nela ao colo, mal chegou ao cimo do pico. (…)

E, procurando fitar o astro do dia, os seus raios luminosos, dando em cheio nos meus olhos, quase me cegaram. Esmorecido então e caindo em mim, tudo aquilo me pareceu um logro.

Tentei ainda olhar de novo para aquele astro e … a mesma coisa!… (…) Foi então que, vendo um facto extraordinário, que me pareceu sobrenatural, caí em terra de joelhos ante tão grande maravilha (…) O Sol havia se despido do seu grande brilho para melhor o fitarmos. Parecia um espelho, quase na perfeição, deixando-me ver no seu centro coisas semelhantes a figuras que a minha vista infelizmente não pôde distinguir, mas que milhares de pessoas, que estavam em volta de mim, diziam a uma voz, com grande satisfação e assombro, serem de Nossa Senhora, de Nosso Senhor, de anjos e de uma igreja ! (…)

Em seguida, uma nuvem correu por sobre o sol que para logo se apresentou do mesmo modo e outra vez com figuras, depois de por alguns segundos dar um movimento como uma roda de fogo preso. Tão excepcional fenómeno repetiu-se pelo espaço de um quarto de hora, aproximadamente, com ligeiras interrupções.

E emquanto isto se passava, a feliz vidente parecia desmaiada ao colo do homem, muito perto de mim.

Espectáculo igual nunca os meus olhos viram e como que jamais verão!…[14]

No momento crucial do milagre, este homem crente[15] confessa que o Sol ficou menos brilhante, movimentando-se em redor de si próprio como uma roda de fogo preso. Apesar de ter notado no centro do Sol “coisas semelhantes a figuras”, não conseguiu distingui-las, tratando-se para muitos da imagem de Nossa Senhora, Nosso Senhor, anjos e uma igreja.

A carta da autoria de Leopoldo Brèe d’Almeida Tavares de Medeiros, intitulada O acontecimento de 5 de Julho em Água de Pau e publicada neste mesmo jornal de 13 de Julho de 1918, a que se refere António Rodrigues Carroça, descreve o mesmo fenómeno visto por ele e por outras testemunhas oculares:

… Fixando com constância o Sol, viu este bailar, perder o seu brilho natural (…) ficar cor de lilás desvanecido e logo após isto, ele rodear-se de uma auréola prateada brilhante e dentro do disco solar, que então se assemelhava a um colossal espelho, aparecer na sua base um quadro que tinha analogia com a conhecida “Ceia de Cristo” (…) No entanto houve também uma grande quantidade de gente que viu distintamente Nossa Senhora com o menino ao colo …[16]

É de salientar que nenhum outro jornal local se pronunciou sobre os factos milagrosos de 5 de Julho. Só um mês depois do sucedido aparece um artigo no jornal Ecos do Norte sobre o acontecimento. Este artigo de crítica às “aparições”, publicado a 31 de Agosto de 1918, foi o único de combate a este fenómeno de Água de Pau e que merece ser aqui transcrito:

Está o nosso país em maré de aparições. (…) Achamos aparições demais; (…) Porque quando uma menina via a Nossa Senhora no célebre pico de Água de Pau, outros a viam no Sol, e quando uns a viam a pé, outros a viam montada numa burra, e até não faltou quem ao mesmo tempo contemplasse no rei dos astros a ceia apostólica ; enfim uma fita cinematográfica de uma ligeireza e simultâneo efeito, que só por si constitui um prodígio difícil de explicar. (…) O já célebre milagre de Água de Pau porém parece não ter outro, senão a mudança do nome de um pico e a canonização de uma menina. Diligencia-se levar até ao fim uma paródia, que já conta episódios ridículos demais. (…)

Há contudo quem se obstine em afirmar que se deu um milagre em Água de Pau. Não seremos nós que sustentaremos discussão para o negar. Futilidades não se discutem. De mais a mais sabemos de sobejo até onde chegam a fé e devoção dos devotos milagreiros, que sobrepõem ao testemunho infalível da Igreja na sua doutrina, o de umas crianças, a quem por força querem decorar com o título de santas. Fiquem-se por lá com essa santidade doméstica para seu uso ; (…)

Fique pois bem assente: o milagre de Água de Pau é apenas um pergaminho de propriedade e uso particular, pelo qual o público não dá coisa nenhuma. Não chegou mesmo a ser um logro, foi apenas uma comédia. Os ensaios feitos até agora com a menina para fazer dela uma taumaturga não deram o menor resultado.[17]

O autor deste artigo identifica os acontecimentos milagrosos de Água de Pau, como uma comédia, uma ilusão vivida pela própria protagonista, “uma paródia, que já conta episódios ridículos demais”, salientando que factos desses “não deveria ter outro registo na imprensa, que não fosse o de uma inteira reprovação”. Não tomando a sério o milagre do Sol, ele afirma que o único objectivo deste acontecimento consiste na mudança do nome de um pico e na canonização da protagonista.

Saliente-se que o autor do artigo é o padre António F. de Mendonça, o único articulista que critica estes acontecimentos na imprensa açoriana de 1918. No entanto, este é o único membro da hierarquia eclesiástica que se pronunciou abertamente sobre o acontecimento, pois no jornal O Autonómico, de 13 de Julho de 1918, Leopoldo Brèe d’Almeida Tavares de Medeiros, referindo-se à opinião do Clero, refere que este manteve prudência e reserva face aos factos:

Vem também aqui a propósito falar do Red.° Vigário João Moniz de Melo, actual administrador do Concelho da Lagoa, o qual durante o período dos tão decantados 18 dias, foi sensatíssimo, não tendo já mais deixado transpirar a sua opinião, muito embora tivesse sido insistentemente consultado sobre o assunto. S. Ex.a achou porém que como autoridade eclesiástica e civil o seu papel era o de uma incondicional reserva …[18]

A este propósito, é de referir, igualmente, que, para além de O Autonómico, nenhum outro jornal católico (por exemplo, A Crença) comentou o assunto, o que leva a crer que havia por parte da maioria do clero e da Diocese de Angra uma certa prudência e silêncio sobre o acontecimento em questão.

No entanto e possivelmente devido à mediatização dos factos, à importância dada pela população aos sucessivos acontecimentos, como também ao facto de se estar num regime republicano de matriz anti-clerical, Gil Moniz Jerónimo refere que as autoridades policiais de Ponta Delgada se deslocaram a casa dos pais da “vidente” Maria Joana “a fim de averiguar aquilo que havia acontecido. Porém, verificando esta que se não tratava de qualquer tipo de burla espiritual de extorsão mental, porque era bastante evidente o grau de riqueza material e social dos pais da criança, a mesma não demorou a sua estadia na Vila de Água de Pau, ficando, por isso, encerrado este caso de investigação civil …” [19]

A partir desta última “aparição”, os jornais da época parecem ter dado pouco relevo ao prosseguimento dos fenómenos, pois, pela investigação a que procedemos, pudemos concluir, para os nove anos que se situam entre 1919 e 1927, pela inexistência de qualquer artigo ou notícia em relação a estes eventos. É a partir do falecimento da “vidente” Maria Joana do Canto, em 1928, que o tema das “aparições” e o projecto da edificação da ermida começam a adquirir relevo e polémica na imprensa local.

  1. 3. À volta da construção de uma ermida: génese e polémica

É apenas em 1928, 1929 e mais tarde em 1966 que o fenómeno das “aparições” reaparece novamente nos jornais micaelenses, pois como vimos, de 1919 a 1928 o acontecimento do milagre deixara de merecer atenção:

Mas foram rolando os anos; (…) Esfriados os fervores, quem ouvira até há pouco uma só palavra ou lera uma linha sobre picos e ermidas ou ermidas sobre picos? Era, repetimos, um plano morto … Todavia – curiosa ironia, muito singular! – foi a morte que veio insuflar novos alentos de vida, que veio ressuscitar o plano, a antiga aspiração … Foi a morte que, fechando à luz deste mundo os olhos da pretendida vidente, deu ensejo a que, numa tão maquiavélica exibição de sentimentalismos e credulidade calculista, uma pena de Água de Pau viesse à imprensa desta cidade agitar de novo a lembrança das pretendidas aparições.[20]

O falecimento da “vidente” Maria Joana do Canto a 6 de Outubro de 1928[21] veio reavivar o plano de construção de uma ermida – sob a invocação de Nossa Senhora do Monte – em memória dos fenómenos ocorridos em 1918 no Pico de Água de Pau. O facto de a “vidente” ter falecido aos 18 anos como previsto pela suposta “Senhora muito linda” irá, sem dúvida, conferir, retroactivamente, uma certa credibilidade aos factos e desencadear um aumento do número de devotos que se deslocavam ao local das “aparições”. Saliente-se, todavia, que os jornais de 1918 que relatam o milagre do Sol de 5 de Julho nunca mencionaram este tipo de declarações ou previsões, que apenas foram expostas e narradas nos jornais locais após a morte de Maria Joana. Trata-se de uma simples coincidência ou como diz J. Costa de uma “tão maquiavélica exibição de sentimentalismos e credulidade calculista”? Este é um assunto que, de facto, levantou uma certa polémica. Com efeito, é sobretudo em 1928[22] e 1929 que os factos de 1918 e o projecto de construção da ermida vão ser criticados pelos jornais micaelenses. Um correspondente anónimo do Correio dos Açores redige um artigo,  publicado a 14 de Junho de 1929, intitulado “A volta de uma ermida”, em que se informa que  a construção da ermida foi autorizada pelo poder eclesiástico, sendo o lançamento da primeira pedra previsto para dia 16 de Julho daquele ano. Além disso, associa o caso de Água de Pau a uma história de “histerismo”.[23] Em resposta a este artigo, o jornal O Autonómico, que em 1918 havia relatado e defendido o milagre (relato feito pelo próprio director do jornal, António Rodrigues Carroça que presenciou o acontecimento), critica o texto do correspondente anónimo, defendendo que “O Prelado deu a licença pedida, como daria para a construção de qualquer outra ermida. Não o esclareceram sobre factos precedentes, nem lhe manifestaram os propósitos dos promotores da obra. Não chamem, pois, a Igreja, em abono de milagres que nunca se propôs estudar e muito menos apoiar.”[24] A consulta ao Boletim Eclesiástico dos Açores e à imprensa da época demonstra, sem quaisquer margem para dúvidas, que a Igreja diocesana não deu qualquer relevo às “aparições” e que o próprio clero, como atrás se referiu, não procurou, de qualquer modo, credibilizar o “fenómeno”.

A 16 de Junho de 1929, o Correio dos Açores publica uma declaração redigida pela comissão construtora da ermida, afirmando que nada havia de comum entre a projectada ermida e os factos ocorridos naquele Pico em Julho de 1918:

A Comissão que dirige as obras desta ermida, receando que tudo se tenha dito ou escrito, que não seja da autoria de nenhum dos seus membros, fosse dar lugar a interpretação de molde a desvirtuar a boa intenção, que a levou a tomar tal empreendimento pede-nos que tornemos público que tal obra não é feita com o intento de consagrar ou perpetuar factos passados há cerca de dez anos no Pico, hoje mais conhecido de Monte Santo, daquela freguesia, mas tão somente levantar naquele Monte, em lugar bastante afastado do que foi teatro de referidos factos, um pequeno monumento à Virgem.[25]

Antes de prosseguir, torna-se importante falar um pouco da comissão que dirigiu este projecto. Floriano Victor Borges, Agente Técnico de Engenharia e natural daquela freguesia era o presidente da comissão construtora do projecto. Parente da família da “vidente” e aderente ao fenómeno das “aparições”, ele próprio afirmou ter tido a visão da futura ermida.[26] Um outro residente de Água de Pau, Leopoldo Brèe d’Almeida Tavares de Medeiros, que escreveu, no jornal O Autonómico, vários artigos de defesa e adesão às “aparições”, é também uma das testemunhas que teriam presenciado o acontecimento de 5 de Julho de 1918, relatando no mesmo jornal que “ainda ali esper[ava] ver uma branca ermidinha a constatar o facto …”[27]. Segundo J. Costa, no seu artigo intitulado “A celebre ermida. Quatro desastres distintos numa declaração … não verdadeira”[28], Leopoldo Tavares de Medeiros desempenhava o cargo de tesoureiro da comissão e fora destituído das funções na sequência da polémica sobre a relação existente entre a construção da ermida e as “aparições”. Na sua perspectiva, teria sido esta a razão principal da destituição do tesoureiro, na medida em que fora o primeiro a ambicionar a edificação da ermida para eternizar o milagre de 1918, facto que a própria comissão tentava desmentir afirmando que a construção da ermida nada tinha de comum com as “aparições”. Para além disso, tudo indica que a comissão já teria alguns anos de existência, visto que, e segundo J. da Costa, o pauense Leopoldo de Medeiros “… foi, por muito tempo, membro da comissão construtora …”[29] É provável que a comissão se tenha organizado logo após as “aparições” de 1918. Entretanto e como as autoridades eclesiásticas nunca apoiaram o projecto, e por conseguinte não concediam a autorização para a edificação da ermida[30], esta só teve lugar apenas onze anos depois dos factos ocorridos.

De facto, os artigos de 22 de Junho e de 5 de Julho de 1929 publicados no jornal Correio dos Açores criticam abertamente a supracitada declaração da comissão construtora da ermida, negando a relação da construção deste pequeno templo com as “aparições” de 1918. O articulista, para além de qualificar as “aparições” de “deplorável comédia”,   considera esta declaração de “tardia, infeliz e contraproducente”, visto que a construção da ermida estava automaticamente ligada às “aparições” e consequentemente à “vidente” Maria Joana do Canto: “a ideia da erecção de uma ermida no Alto do Pico de Água de Pau teve como origem única a serie de factos anormais, bem lamentaveis, que se desenrolaram naquele lugar em 1918.”[31] Segundo este articulista, foi o artigo de 14 de Junho do Correio dos Açores, intitulado “A volta de uma ermida”, desaprovando o fenómeno sobrenatural, que levou a comissão construtora declarar, nas colunas do Diário dos Açores e do Correio dos Açores, que nada havia de comum entre a construção da ermida e as “aparições”. A desaprovação, da parte do clero, contribuiu certamente para a publicação desta declaração, pois o próprio clero teria enviado ao Governador do bispado uma declaração de oposição à construção da ermida em memória das “aparições”:

Porque a correspondência de Água de Pau veio a lume depois da declaração de guerra que o ilustrado clero micaelense, representado por cerca de vinte dos seus mais considerados elementos (…) representaram colectivamente ao muito digno Governador do Bispado, contra o projecto da edificação da ermida, destinada a comemorar as falsas aparições e a atrair, com fim de exploração, os devotos crentes numa detestável mentira (…). Depois do protesto e da representação elucidativa dirigida ao digno Governador do Bispado, é que veio a declaração … (…) E o digno Governador do Bispado, o ilustre Sr. Dr. José Bernardo de Almada revogou a licença que ardilosamente lhe tinham extorquido.[32]

Ao protesto do Clero, juntou-se a recusa, por parte das autoridades eclesiásticas, da autorização para a edificação da ermida, razão pela qual a comissão se sentiu na obrigação de negar a relação da construção da capela com as “aparições”, argumentando que a construção da ermida iria ser feita “em lugar bastante afastado do que foi teatro de referidos factos”, isto é no local completamente oposto ao das “aparições”. No entanto, trata-se de um argumento sem fundamento, visto que “ … o lugar destinado à futura ermida é o único ponto sólido daquele pico, o único que pode suportar um edifício, porque o lugar das aparições … é uma elevação de cascalho (…) que nem com supremos esforços de engenharia pode suportar uma parede!”[33] Apesar de toda esta polémica, a comissão construtora conseguiu alcançar do Governador do Bispado a licença canónica para a construção da ermida, tendo sido esta inaugurada a 29 de Setembro de 1931[34], seguida de uma procissão e de uma missa realizada pelo vigário de Água de Pau.[35]

  1. 4. A imagem do acontecido na memória colectiva

O pico de Água de Pau foi o palco privilegiado das “aparições” atrás relatadas e o lugar ideal para a edificação da ermida de Nossa Senhora do Monte, pois é impossível passar por esta localidade sem se ver este pequeno templo. Se, segundo Halbwacks[36], toda a memória colectiva assenta num quadro espacial, sendo o espaço uma realidade durável porque é fácil penetrar no passado através dele, o lugar onde se encontra a ermida de Nossa senhora do Monte pode ser considerado como uma reconstrução e uma representação dos factos passados mantendo-os sempre vivos no presente. Neste contexto, trata-se de um lugar que num determinado momento específico – 1918 – se transforma num lugar simbólico pelos fenómenos ocorridos – “aparições” marianas – fixando a história deste acontecimento pela “materialização do local” através da construção da ermida. Será, pois, este pequeno mas bem visível edifício a transmitir um sentido de continuidade com os acontecimentos ocorridos no passado. A ermida constitui então, no presente, a imagem materializada, a referência por excelência, dos factos ocorridos em 1918. Nesta relação da memória com o lugar, com o espaço, torna-se importante perscrutar o que ainda resta de significativo deste “acontecimento” na memória colectiva e também indagar do significado que a comunidade local atribui à Ermida sob a invocação de Nossa Senhora do Monte, construída treze anos após as “aparições”. Assim, e a partir das significações que os entrevistados[37] desta localidade de Água de Pau exprimiram sobre o fenómeno de 1918, concluímos que a história das “aparições” ocorridas no Monte se encontra ainda bem presente na memória colectiva. Contudo, foram os mais idosos que relataram o fenómeno de 1918 com mais pormenor contrariamente aos mais jovens, que têm conhecimento do acontecimento, mas de forma mais vaga. Apesar disso, poucos são os que ainda se lembram do nome da “vidente”, pois durante as várias conversas com os entrevistados verificámos que utilizavam o substantivo “pequena”, “menina” ou então citavam a “filha do senhor Teófilo” quando se referiam a Maria Joana do Canto. Para a maioria dos informantes, todas as “aparições” ocorreram no cognominado “Monte Santo”. Contudo, o chamado “milagre do Sol”, de 5 de Julho de 1918, é sobretudo relembrado e contado pelos mais idosos. Constatámos também que os entrevistados com mais idade mencionaram que as “aparições” ocorreram no local oposto à ermida, enquanto que para os restantes as “aparições” aconteceram no local onde foi construído o pequeno templo. Relativamente à ermida, alguns residentes mencionaram que a “vidente” teria pedido aos pais a sua construção. Apenas um entrevistado referiu que a Igreja nunca acreditara neste fenómeno e que o facto de a família provir de um estrato social e financeiro elevado contribuiu consideravelmente para que a construção da ermida fosse autorizada pelas autoridades eclesiásticas. No que diz respeito à credibilidade do fenómeno, a maior parte dos entrevistados acredita nos acontecimentos ocorridos no “Monte Santo”, considerando-os verídicos, contrariamente às opiniões formadas pelos mais jovens que não acreditam no fenómeno, argumentando que Maria Joana do Canto sofria de transtorno mental (esquizofrenia). Na análise das entrevistas, ficou evidente que a protagonista Maria Sofia, raramente é referida pelos entrevistados, sendo Maria Joana do Canto a principal, e por vezes a única, interveniente no acontecido.

Relativamente ao significado que atribui à Ermida de Nossa Senhora do Monte, a população abordada demonstrou-se convicta de que a construção da ermida se encontra automaticamente ligada aos acontecimentos de 1918. Para os entrevistados a ermida é a imagem-recordação e a representação dos factos passados na memória colectiva.

Conclusão

O fenómeno das “aparições” de Água de Pau, contrariamente ao que aconteceu em Fátima, viveram apenas alguns minutos efémeros do jornalismo açoriano. Luís Reis Torgal ao estudar o processo das “aparições” de Fátima, faz uma análise comparativa entre Fátima e Lourdes, evidenciando as afinidades existentes entre elas.[38] Ao compararmos a sua análise com o caso das “aparições” de Água de Pau, verificamos que existem aspectos que se aproximam significativamente dos acontecimentos de Fátima. De facto, as principais protagonistas eram crianças do sexo feminino; Maria Joana do Canto, tal como Lúcia, era a única que dialogava com Nossa Senhora; a aparência do espectro durante as “aparições” era a de uma “Senhora muito linda”; as mensagens transmitidas por esta “Senhora” eram sobretudo o apelo à oração para a paz em Portugal, o pedido da construção de um templo mariano no local das “aparições” e a promessa de fazer um milagre de forma a credibilizar os eventos; a descrição do “milagre do Sol” assemelha-se ao “bailado do Sol” ocorrido em Fátima. Mas há também um aspecto que difere significativamente de Fátima: o estrato social da principal “vidente”, que, como se referiu, em Água de Pau provinha de uma família abastada.

Os jornais O Autonómico, Diário dos Açores e A Ilha foram os que, de um certo modo, reconheceram o fenómeno, relatando e divulgando o evento do “milagre do Sol” de 5 de Julho de 1918 e a construção da ermida, enquanto nos jornais Ecos do Norte e Correio dos Açores, os artigos publicados procuravam desacreditar o “fenómeno”, condenando vivamente as tentativas de aproveitamento da credulidade popular para transformar o suposto acontecimento sobrenatural em “aparição” mariana. As autoridades eclesiásticas revelaram, face ao fenómeno das “aparições” de Água de Pau uma grande prudência e nunca se pronunciaram publicamente sobre o assunto, sendo certo, porém, que foi da pena de um padre que partiu o primeiro artigo fortemente crítico da publicidade que estava a ser conferida ao assunto.

O conteúdo dos raros textos que encontrámos sobre o tema em questão é lacónico e até mesmo enigmático: os factos narrados pelos diferentes autores diferem e até por vezes são contraditórios, sobretudo no que diz respeito às primeiras “aparições”. Para além disso, é de salientar que as mensagens e previsões transmitidas pela “Senhora muito linda” só são relatadas e divulgadas pela imprensa aquando da morte de Maria Joana do Canto e da edificação do local sagrado.

Entre 1919 e 1927, o evento de Água de Pau deixou de ser assunto de destaque para a imprensa e durante este período de nove anos parece mesmo ter caído no esquecimento. Mas em 1928, o falecimento da “vidente” Maria Joana do Canto relançou o assunto das “aparições” e sobretudo serviu de pretexto e motivação para a realização do projecto da construção do local sagrado e do seu culto. Os familiares de Maria Joana do Canto empenharam-se na missão de comprar a parte do terreno onde ia ser construída a ermida de Nossa Senhora do Monte, sendo eles os principais impulsionadores e quem, financeiramente, mais contribuiu para a edificação da ermida. Apesar de as autoridades eclesiásticas não se terem pronunciado sobre as “aparições” e do Clero ter protestado e reprovado o projecto da edificação da ermida destinada a comemorar as “aparições”[39], a licença canónica para a sua construção será concedida pelo Governador do Bispado em 1929. Embora a própria comissão construtora tenha negado a relação da construção da ermida com as “aparições”, facto que se justifica pelos protestos e oposições do clero e das autoridades eclesiásticas, tudo indica que este projecto de santidade do monte e de edificação de uma ermida como forma de eternizar os factos assenta sobretudo numa “construção dos pais” de Maria Joana do Canto. O desgosto da morte da única filha, aos 18 anos, terá, certamente, contribuído para acelerar o processo de construção da ermida, que passaria também a constituir uma espécie de homenagem póstuma à jovem, se bem que tanto na ermida do Monte como no jazigo de Maria Joana do Canto não há nenhuma dedicatória ou lápide em memória da “vidente” ou do fenómeno de 1918. No entanto e de acordo com a investigação e análise das entrevistas, o fenómeno de 1918, num contexto de transmissão oral, ainda se  encontra presente no imaginário popular e na memória do povo pauense, pois trata-se de um acontecimento que foi aceite pela população que o recebeu, reconheceu-o e prolongou-o ao longo das gerações. O local apelidado de “Monte Santo” e assim conhecido por todos os residentes passou a ter um sentido primordial na história do fenómeno e a ermida constitui o monumento simbólico que permite recordar e evocar a presença do acontecimento, mantendo-o sempre vivo e presente na memória colectiva.

Bibliografia

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VIEIRA, António I. – «Morreu a vidente de Água de Pau». Os Açores. Revista Ilustrada. Ponta Delgada, Ano II/2ª série: N°11, (Novembro de 1928), p.30.


[1] Luís Filipe Torgal desenvolveu um minucioso trabalho de investigação histórica sobre as « aparições » de Fátima e que foi um ponto de apoio importante para esta minha investigação. Cf. TORGAL, Luís Filipe - As «aparições de Fátima». Imagens e representações (1917-39). 1ª ed. Lisboa: Temas e Debates, 2002. 241 p. ISBN 972-759-544-8

[2] Cf. AVLIS, J. – «Água de Pau. De como principiaram as aparições de Nossa Senhora em 1918, e de como ocorreram as aparições do milagre do Sol ao Papa Pio XII, cognominado o Papa de Fátima». Diário dos Açores. Ponta Delgada, Ano 97, N°26210, 08 de Setembro de 1966, p.1.

[3] Aquando de uma conversa realizada em 2002, em Água de Pau, com a senhora Maria do Carmo do Canto (1925-2010), residente em Água de Pau.

[4] JERÓNIMO, Gil Moniz – «Fenómenos, Lendas e Monte Santo». Açores, Mistério Insondável. 1ª ed. Ponta Delgada: EGA, 2002. p. 93.

[5] JERÓNIMO, Gil Moniz – «Fenómenos …»,  p. 93.

[6] « 28 anos depois … E o milagre deu-se… » A Ilha. Ponta Delgada, Ano VIII, N°757, 5 de Outubro de 1946, p. 3.

[7] japoneira é um arbusto de popularmente chamadas “rosas do Japão”, ou seja, camélias.

[8] AVLIS, J. – «Água de Pau. De como principiaram …», p. 1.

[9] AVLIS, J. – «Água de Pau. De como principiaram …», pp. 1, 3.

[10] A este propósito o Diário dos Açores relata: “Disse-lhes Nossa senhora  que (…) continuassem a rezar, pedindo a Nosso Senhor para que acabasse com a guerra. Recomendou-lhes também que dissessem aquilo mesmo a todo o povo da freguesia …”AVLIS, J. – «Água de Pau. De como principiaram …», p. 1.

[11] Cf. AVLIS, J. – «Água de Pau deseja preparar o caminho de acesso à ermida de Nossa senhora do Monte, para poder entrar na excursão das três ermidas». Diário dos Açores. Ponta Delgada, Ano 97, N°26194, 20 de Agosto de 1966, p. 3.

[12] JERÓNIMO, Gil Moniz – «Fenómenos …», p. 94.

[13] «Em Água de Pau». O Autonómico. Vila Franca do Campo, Ano XX, N° 947, 29 de Junho de 1918, p. 2.

[14] CARROÇA, António Rodrigues - «Um facto extraordinário». O Autonómico. Vila Franca do Campo, Ano XX, N° 949, 13 de Julho de 1918, p. 2.

[15] O jornal O Autonómico afirma­?se como jornal católico. É um dos mais acérrimos jornais açorianos no combate à I República.

[16] MEDEIROS, Leopoldo Brèe d’Almeida Tavares de – «O acontecimento de 5 de Julho em Água de Pau». O Autonómico. Vila Franca do Campo, Ano XX, N° 949, 13 de Julho de 1918, p. 2.

[17] MENDONÇA, Padre António F. de – «Aparições». Ecos do Norte. Ribeira Grande, Ano III, N° 951, 31 de Agosto de 1918, p.1. Em resposta a esta crítica, o articulista Leopoldo Brèe d’Almeida Tavares escreveu dois artigos no jornal O Autonómico. Cf. MEDEIROS, Leopoldo Brèe d’Almeida Tavares de – «O acontecimento de 5 de Julho em Água de Pau». O Autonómico. Vila Franca do Campo, Ano XX, N° 951, 27 de Julho de 1918, pp. 1-2.; MEDEIROS, Leopoldo Brèe d’Almeida Tavares de – «Voltando a campo». O Autonómico. Vila Franca do Campo, Ano XX, N° 955, 24 de Agosto de 1918, p. 2.

[18] MEDEIROS, Leopoldo Brèe d’Almeida Tavares de – «O acontecimento de 5 de Julho …»,  p. 2. Este excerto, assim como uma grande parte do artigo de Leopoldo é transcrito no artigo intitulado “Água de Pau deseja preparar o caminho de acesso à ermida de Nossa senhora do Monte, para poder entrar na excursão das três ermidas” do jornal Diário dos Açores. Cf. AVLIS, J. – «Água de Pau deseja preparar …» pp. 1, 3.

[19] JERÓNIMO, Gil Moniz – «Fenómenos …», p. 104.

[20] COSTA, J. – «Um pouco tarde … A propósito da ermida no Pico de Água de Pau». Correio dos Açores. Ponta Delgada, Ano X, N° 2633, 22 de Junho de 1929, p.1.

[21] Segundo o jornal Diário dos Açores, Maria Joana foi vítima de uma febre tifóide. Cf. – «Falecimentos». Diário dos Açores. Ponta Delgada, N° 10928, 8 de Outubro de 1928, p.2.

[22] O número 11 do mês de Novembro de 1928 da Revista Os Açores dedica uma página inteiramente consagrada à memória da “vidente”, recordando as visões da falecida jovem e o projecto da ermida. Cf. VIEIRA, António I. – «Morreu a vidente de Água de Pau». Os Açores. Revista Ilustrada. Ponta Delgada, Ano II/2ª série: N°11, (Novembro de 1928), p.30.

[23] “A clínica psiquiátrica, segundo dizem, é banal, não tem importância de maior; não há estudante dos últimos anos de medicina, que não saiba que as pitiacas, as histéricas, tem uma natural inclinação para a menomania, para alucinações místicas, visões de Nossa Senhora, etc (…) Mas a criança era de tanta tenra idade … Estaria no caso de Teresa? Não sabemos nem discutimos, apenas relatamos. (…) O que é facto é estar já autorizada pelo poder eclesiástico a construção de uma ermida no alto dessa montanha estando os trabalhos de terraplanagem bastante adiantados. (…) Sabemos que no próximo domingo, 16 do corrente, será lançada a primeira pedra com todo o cerimonial litúrgico (…)” – «Água de Pau. À volta de uma ermida». Correio dos Açores. Ponta Delgada, Ano X, N° 2621, 14 de Junho de 1929, p.2.

[24] – «Fora do tempo». O Autonómico. Vila Franca do Campo, Ano 91, N°1412, 22 de Junho de 1929, p.2.

[25] – «Nova ermida em Água de Pau». Correio dos Açores. Ponta Delgada, Ano X, N° 2623, 16 de Junho de 1929, p.2.  Cf. igualmente: – «Nova ermida em Água de Pau». Diário dos Açores. Ponta Delgada, Ano 5, N° 11124, 15 de Junho de 1929, p. 3.

[26] Esta afirmação foi recolhida aquando da nossa conversa com a Senhora Maria do Carmo. Cf. igualmente JERÓNIMO, Gil Moniz – «Fenómenos …», p. 125.

[27] MEDEIROS, Leopoldo Brèe d’Almeida Tavares de – «O acontecimento de 5 de Julho em Água de Pau». O Autonómico. Vila Franca do Campo, Ano XX, N° 951, 27 de Julho de 1918, p. 2.

[28] COSTA, J. – «A célebre ermida. Quatro desastres distintos numa declaração … não verdadeira». Correio dos Açores. Ponta Delgada, Ano X, N°2637, 5 de Julho de 1929, p. 2.

[29] COSTA, J. – «A célebre ermida …», p.1

[30] Esta ermida com o nome de Nossa Senhora do Monte foi mandada edificar pelos pais da “vidente” – Teófilo Tavares do Canto e sua esposa, D. Isolina Adelaide Soares – que financiaram totalmente a  construção da mesma.

[31] COSTA, J. – «Um pouco tarde …», p.1.

[32] COSTA, J. – «Um pouco tarde …», p.1.

[33] COSTA, J. – «A célebre ermida …», p. 2. A própria prima da “vidente”, Maria do Carmo do Canto, afirmou igualmente a impossibilidade de construção da ermida no local onde ocorreram as aparições.

[34] A partir da investigação a que procedemos nos documentos oficiais da igreja paroquial de Nossa Senhora dos Anjos de Água de Pau, verificámos que a ermida de Nossa Senhora do Monte foi doada no dia 10 de Setembro de 1931, pela comissão construtora, à Corporação encarregada do Culto Católico da paróquia de Nossa Senhora dos Anjos.

[35] COSTA, J. – «A célebre ermida …», p.2. Cf. igualmente AVLIS, J. – «Água de Pau deseja preparar …», p. 3. Este artigo refere igualmente que após a obtenção da licença concedida pela diocese, foi lançada a primeira pedra no dia 16 de Julho de 1929 seguida da benção e missa campal no dito lugar.

[36] HALBWACHS, Maurice. – La Mémoire Collective. Paris : Albin Michel, 1997, pp. 104-105. « c’est l’image seule de l’espace qui, en raison de sa stabilité, nous donne l’illusion de ne point changer à travers le temps et de retrouver le passé dans le présent ; mais c’est bien ainsi qu’on peut définir la mémoire ; et l’espace seul est assez stable pour pouvoir durer sans vieillir ni perdre aucune de ses parties.»

[37] Foram entrevistados 50 residentes de Água de Pau, de ambos os sexos, com idades compreendidas entre os 18 e os 85 anos. Nestas entrevistas, sob a forma de conversação, demos preferência às pessoas de mais idade, por ser mais fácil encontrar nessas pessoas as informações da tradição popular passada.

[38] Cf. TORGAL, Luís Filipe - As «aparições de Fátima» …, pp. 119-123.

[39] Infelizmente, dadas as condições em que se encontra o arquivo da Diocese, não nos foi possível consultar o documento que teria sido redigido por cerca de duas dezenas de membros do clero a chamar a atenção ao Governador do bispado sobre o logro em que a Igreja podia cair se conferisse qualquer credibilidade aos acontecimentos, autorizando a construção da ermida.

O Pico de Água de Pau antes da construção da ermida

O Pico de Água de Pau com a ermida de Nossa Senhora do Monte.

Ermida de Nossa Senhora do Monte construída em 1931.

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